segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Solidários à dor da professora Clenir e cientes de que, transformadas em palavras, as situações difíceis se tornam menos pontiagudas ao nosso entendimento, abrimos este humano espaço para ela e sua peculiar sensibilidade.

MINHA CARTA DE DIA DOS PAIS
por Clenir Bellezi de Oliveira



Meu pai era um universo que nunca coube muito bem no plano a que foi destinado. Tinha grandes impaciências com a velocidade lenta das coisas, com a desonestidade dos homens, com a decadência da civilização, e, no final, com as dores atrozes e constantes que impediam o dinamismo de um corpo coroado por uma mente vertiginosa, inquieta. Até o fim, até a última semana, ele dizia que a grandeza de um homem é seu trabalho. Nunca se conformou em ter de parar de trabalhar.









Mamãe aos 21 anos.
Meu pai amou uma só mulher, uma belíssima mulher, durante 57 anos. Ele era um homem que não cogitava traições. Saía pela manhã, e no final da tarde, pontualmente, eu, aos três, quatro anos, me lembro de ouvir seus passos pesados atravessando o longo corredor de nossa casinha de fundos. Meu coração de menina disparava: era ELE que chegava! E quando ELE chegava, tudo ficava melhor, mais bonito, mais seguro, tudo fazia sentido, e o mundo ficava completo. Por muito tempo, a vida nunca me pareceu mais real do que naquela época, em que o cosmo era composto por três elementos: ele, minha mãe e eu. Nosso quarto/sala/cozinha/banheiro e corredor/quintal. Mais tarde a vida ficaria perfeita: faltava, sem que eu soubesse, minha irmã, a criança mais linda, mais louca, mais amorosa que conheci. E eu sou mãe, e eu sou professora. Mas ela veio, afinal, e injetou fogos de artifício em nosso cotidiano, nos apaixonamos perdidamente por ela.

Meu pai era grandão e pequenino. Era grande, física e espiritualmente, para nos abarcar, suas três meninas; e pequenino para brincar com suas duas filhas com delicadezas de amor, de gestos, de improvisos, de carinhos. Suas mãos vastas nunca nos feriram. Tirava coelhos invisíveis de cartolas invisíveis, que só existiam na presença dele. Tinha uma máquina de fazer rir. Histórias que guardava num saco de nuvens de profundidade desmedida. Explicava, sábio e paciente, os pedaços dos filmes que não entendíamos, porque ele era um homem que conhecia o mundo inteiro, sem nunca ter saído dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, e, nós vivíamos no seu reino. E ele reinava para nós, esquecido, tantas vezes, de si. Acho que éramos planetas felizes que orbitavam sob o poder de sua gravidade, no giro colorido de seu entorno. 

Ei-lo aos quinze anos. Veja o brilho inteligente e seguro desses olhos. São olhos de quem poderia conquistar o mundo inteiro. Aos nove anos, já trabalhava, menino forte, carregando malas na estação de trem de Quatá, terra natal e bela cidadezinha a Oeste do Estado de São Paulo. Aos treze, pagava o aluguel da casa de pai, mãe e cinco irmãos. Aos catorze, era fotógrafo, profissão que exerceu por mais de quarenta anos, e que trouxe o pão para nossa mesa. Ele cozinhava muito bem. Lá em casa, todo domingo era dia de festa porque ele fazia uma refeição especial.








As pessoas gostavam dele. O Oswaldo, o Oswaldão, o Vadão, o Vadinho (para minha mãe que é flor, mas nunca foi dona Flor), o Gordo. Filho de dona Amélia Gil e de seu João Guindaste.



Para mim era o pai, papa, papai, Ianque (eu nem sabia o significado da palavra, mas usava porque achava forte e que lhe caía bem).




Quando eu era bem pequena passava na TV um desenho animado sobre dois ursos, um pai e um filho. O ursinho dizia pro pai: “_ Quando eu estou na floresta, e o lobo mau vem me pegar, e meu corpinho começa a tremer, e meus olhinhos se enchem de lágrimas, quem vem me salvar?” E ele mesmo respondia: “­- Meeeuuu Paaai!”. Aprendi rapidamente a fala do ursinho e sempre dizia pra ele: “- Quando eu estou na floresta...” E ele ria, ria, ria... Quem há de me salvar agora?

Ficou-me este rosto de bondade, um gosto de desamparo, esta saudade, imensa saudade.



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