terça-feira, 11 de outubro de 2011

O Alienista - Capítulo II: Torrente de Loucos

Três dias depois, numa expansão íntima com o boticário Crispim Soares, desvendou o alienista o mistério do seu coração.

— A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito de S. Paulo aos Coríntios: “Se eu conhecer quanto se pode saber, e não tiver caridade, não sou nada”. O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade.

— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.

— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me, porém, muito maior campo aos meus estudos.

— Muito maior, acrescentou o outro.

E tinham razão. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua!

— Não digo que não, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.

— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe...

— Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica, e disso trato...

— Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!

Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho. Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço; achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os maiores requintes de crueldade.

O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E então começou aquela ânsia de ir ao fim do mundo à cata dos fugitivos.

A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era um pobre-diabo, filho de um algibebe, que narrava às paredes (porque não olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:

— Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou o marquês, o marquês engendrou o conde, que sou eu.

Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco, seis vezes seguidas:

— Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.

Outro da mesma espécie era um escrivão, que se vendia por mordomo do rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e duzentas a outro, e não acabava mais. Não falo dos casos de monomania religiosa; apenas citarei um sujeito que, chamando-se João de Deus, dizia agora ser o deus João, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse, e as penas do inferno aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que não dizia nada, porque imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as estrelas se despegariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que recebera de Deus.

Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos por caridade do que por interesse científico.

Que, na verdade, a paciência do alienista era ainda mais extraordinária do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa. Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e, aceitando essa idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos, a quem incumbiu da execução de um regimento que lhes deu, aprovado pela Câmara, da distribuição da comida e da roupa, e assim também na escrita, etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício.

— A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que há o governo temporal e o governo espiritual. E o Padre Lopes ria deste pio trocado, — e acrescentava, — com o único fim de dizer também uma chalaça: — Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar ao papa.

Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência. Ora, todo esse trabalho levava-lhe o melhor e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.

4 comentários:

  1. A descrição da loucura costuma gerar certa curiosidade e, muita vez, o riso... lembrei-me agora de uma série de piadinhas que usam o tipo do louco para fazer humor. É certo brincar com o assunto? O que vocês acham?.

    Deste capítulo, a fala do louco "Deus engendrou um ovo..." me lembrou muito a cena do filme Equus em que o garoto orava e adorava o "deus" cavalo. Tantos anos antes, Machado já tratava do assunto...

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  3. Bechara, por falar em lembrança, o conto de Machado trouxe-me à memória Salvatore, personagem de “O nome da Rosa” de Umberto Eco, que tem semelhanças com o primeiro louco do conto machadiano. Um ponto interessante dessa personagem é justamente a linguagem híbrida formada da mistura de várias línguas. É possível perceber nesse ponto o embate entre religião e ciência (fé e razão) que se tornou caro não somente à filosofia, mas também à literatura. O padre tenta explicar a mistura de línguas através da torre de Babel, figura bíblica que elucida o surgimento das várias línguas no mundo, enquanto o Alienista, movido pela razão, quer descobrir um motivo humano, científico para o acontecimento.

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  4. Pode crer, Thiagão! E o comportamento de cada personagem remete diretamente à imagem que ciência e religião gozavam: Bacamarte sistematiza o estudo e racionaliza o trabalho; o vigário, apoiado na autoridade do papa, zomba da ilusão de poder do cientista. Ótima alegoria!

    E eu ainda insisto (ainda que ninguém responda, pelo menos pensem no assunto...): é depreciativo esse humor em que se expõe um "defeito" da pessoa?
    Insisto porque é um assunto que me interessa. Não sei mais com o que posso brincar, com o que não posso. Reparem: não estou aqui defendendo um humor sem limites, como pregam os Rafinhas Bastos da vida, mas gostaria de justamente conhecer esses limites em um diálogo aberto e racional. Por exemplo, sempre brinquei que há hormônio feminino na cerveja, por isso, quando bebo, fico chato, falo besteira e dirijo mal. Agora, estou em dúvida se posso falar uma graça dessas porque estaria reforçando a submissão da mulher e consolidando um esteriótipo depreciativo da figura feminina... Embora eu sempre diga que minha esposa dirige melhor que eu, que eu tenha consciência de que sou chato por natureza, e que considero falar besteira um esporte, um chiste como o relatado acima seria suficiente para me colocar no rol do misóginos de plantão. Quando faço esse tipo de humor (e creio que Machado e outros também), o alvo é justamente o esteriótipo. O riso nasce do exagero (caricatural) de certas diferenças naturais e culturais entre as pessoas. Acho que o que pega é que, em alguns casos, é difícil saber se o alvo da piada se sente ofendido... enquanto não resolvemos isso, só me sinto à vontade de brincar com corintianos maloqueiros, narigudos e desajustados em geral (como os que preferem arte e cultura a inúmeras benesses do mundo de consumo). Assim, posso pelo menos rir de mim mesmo...
    Abraços!

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