terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Cinema, transição e identidade nacional

Caros,
É com grande prazer que publico hoje aqui um artigo do professor Hélio, amigo e companheiro de batalha.
Além da pertinência do tema (o texto produz uma análise comparativa entre Terra Estrangeira -que exibiremos nesta semana -  e Bye Bye Brasil - que fica como sugestão), o texto nos permite "ouvir" a cristalina voz do Hélio-escrito. Após um ano convivendo com os graves e incisivos comentários do Helião, temos aqui a chance de vê-lo desenvolver, sem interrupções, uma linha de raciocínio que busca apresentar a observação atenta da obra de arte sob a lâmpada incandescente do saber histórico.
Com seu artigo, a desfilar a toga de um gênero discursivo de cunho mais acadêmico, nosso amigo revela um som oculto (de baixa frequência, como ele diz no texto) e nos permite ouvir o ritmo do fado que nos foi imposto.
Sem mais delongas, vamos ao texto!

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Cinema, transição e identidade nacional:
Bye Bye Brasil e Terra Estrangeira
Por Hélio Moreti




-              Está vendo essa cadeira Paco? Isso não é uma cadeira. Este prato não é um prato, esta mesa não é  uma mesa. São vestígios. Isso! Vestígios de uma puta aventura; a maior aventura de todos os tempos; dos conquistadores, dos Aguirres dos Ezaguirres;  aventura da navegação, da colonização, da imigração. Todas as provas estão aqui, todas! É claro que não as grandes provas, porque o ouro já se foi há muito tempo e o diamante já está acabando. Estas são as pequenas provas. É o suor de gente comum. Você entende isso Paco?
-              Han han...
-              Você acha que as pessoas querem se lembrar disso?
-              Não? Por que não?
-              Porque a memória, Paco, foi se embora com os visionários e com o ouro, com os santos barrocos e com o Aleijadinho. Estamos a viver o império da mediocridade meu amigo; dos engarrafamentos em shopping centers, dessa falsa modernidade de janotas incultos, de leitores de Sidney Sheldon. É o fim do mundo, Paco, é o fim do mundo!

Fala do personagem Igor, em Terra Estrangeira

Este modesto artigo tem o propósito de analisar dois períodos distintos de nossa história sob a perspectiva da representação que o cinema nos oferece. O foco fundamental da discussão deverá ser a construção de identidades em momentos de transição, presente em dois filmes: Bye Bye Brasil e Terra Estrangeira . A proposta é decodificar essas duas narrativas, confrontando-as a partir de sua historicidade, levando em consideração o momento da produção dos filmes, os recursos utilizados, a proposta de país esboçada em cada um deles, assim como o impacto dessas produções no cenário artístico nacional e internacional.
Confrontar dois filmes de gêneros e tempos tão diferentes (Bye Bye Brasil é uma comédia dirigida por Carlos Diegues em 1978 e Terra Estrangeira é um drama dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas em 1994) se justifica pela existência de um elo entre as duas narrativas: os dois filmes retratam o Brasil em momentos de transição, ou seja, em 1978 ao final da ditadura militar e em 1995 no desencanto do governo Collor e início do governo FHC.
Os filmes tratam de modos diferentes de exílio; um para o interior do próprio país, em busca de um sonho encoberto pela floresta amazônica, na cidade Altamira; outro na aventura alucinante de brasileiros em Portugal. Ao mesmo tempo são histórias de (re)descoberta de vários brasis que estão no subsolo (minérios),  que afloram de maneiras diferentes e revelam as perspectivas dos brasileiros a procura de uma nova identidade,  de um Brasil multifacetado, contraditório e estrangeiro. Nos dois casos a exploração de minérios, as entranhas do país, é feita por contrabandistas, que roubam essa alma, num processo de continuidade da colonização que ecoa surda, em baixa freqüência, por toda a história do Brasil. O subsolo que abriga as raízes oferece a possibilidade de desenraizamento, nas pedras de diamantes de Igor de Terra Estrangeira :
No filme em que Salles divide a direção com Daniela Thomas, traz as marcas de seu tempo. Tempo em que, possivelmente, era mais fácil entrever as contradições de um mundo cada vez mais integrado, mas com pessoas cada vez mais desenraizadas. Desenraizadas não de uma nacionalidade ou de outra (esse tipo de raíz que se imagina), mas da dignidade, da cidadania, e da relação com o outro. Em 1990, Collor e sua equipe econômica haviam acabado de confiscar a vida de milhões de brasileiros, para melhor se ‘integrar’ num sistema econômico mundializado.[1]
           
Na comédia de Bye Bye Brasil, o Lord Cigano carrega em si as marcas desse desenraizamento. Ao mesmo tempo que é um Lord, símbolo da nobreza inglesa e ironicamente lembra a  nobreza  ibérica, que  é a versão falida e bufa e que se instala no Brasil desde a colonização; e é cigano,  ou seja, a própria diáspora como estilo de vida. Os outros integrantes da Caranava Rolidei,[2], a “atriz caribenha” Salomé, que fala portunhol  e que na verdade é brasileira, costumava ser apresentada como a “mulher que foi amante de presidentes dos EUA”.E finalmente o improvável e fortíssimo Andorinha, ave de hábitos migratórios, outro símbolo da transitoriedade constante e que reforça a idéia do passageiro e do estrangeiro.
O emaranhado de identidades[3] assumidas e abandonadas no instante seguinte contribui para criar um ar picaresco para os personagens da caravana. Ao longo da trajetória dessa caravana são agregados dois personagens: Ciço, o sanfoneiro e Dasdô, sua esposa que espera um bebê. Os novos integrantes da caravana trazem para esse universo o desespero do retirante, que ao mesmo tempo foge da sua realidade e corre de encontro a ela. Como se buscasse fazer um inventário do modelo de Brasil Grande, a caravana cruza com tipos e situações que são testemunhas vivas da aberração pseudo-moderna em que foi transformado o país pós-ditadura. Imagens até certo ponto grotescas e esquemáticas, mas bastante contundentes, como o cacique usando um macacão da DNER, (como se a Transamazônica se estendesse inclusive sobre a população local) e que traz uma garrafa de Coca-Cola para a sua mãe, que por sua vez escuta um rádio a pilha e usa roupas de “civilizado”; ou dos cabarés precários que tocam boleros semi-eletrônicos, incrustados na vastidão de uma terra devastada pelo “progresso nacional”.O grande e constante confronto dessa trupe transitória é com a TV, que com suas antenas espinhas de peixe, rouba o público e reinventa um Brasil pasteurizado pelos sons da trilha de abertura da novela das oito.

 A fotografia de Lauro Escorel Filho em Bye Bye Brasil, carrega nas cores fortes e na nuance sépia da poeira,  a fantasia circense da Caravana Rolidei é emoldurada por cidades isoladas no sertão nordestino. Já a textura em preto e branco de Walter Carvalho apresenta em tom noir, um thriller policial entre as cidades de Lisboa e São Paulo. A vastidão do sertão e do mar são as malhas por onde o tempo das narrativas trafegam, em um eterno movimento migratório. Essa fuga de caráter existencial converge para a procura do sentido da vida do Brasil, dos brasileiros. Essa busca de mão dupla que cerca a identidade nacional e individual está presente em diversos momentos da história nacional e a relevância da análise desse tipo de narrativa está nessa quase eterna transição política no Brasil.



[1] Machado, Igor José de Renó  e Gustavo Adolfo Pedrosa Daltro Santos  in resenhas in http://www.comciencia.br/, dezembro de 2000
[2] Que depois muda para Rolidey. Nas falas finais de Lord Cigano: “- Rolidey tem ipissilône sanfoneiro. Como a gente era ignorante!” Essa passagem reforça de maneira caricata o processo de absorção da língua e da cultura estrangeira, apontando para um indício de mundialização presente em todo contexto de expansão do capitalismo.
[3] Sobre a discussão sobre identidade ver HALL, Stuart, A Identidade Cultural na Pós-modernidade, DP&A Ed., RJ, 2002 e Bhabha, Homi K. O Local da Cultura, UFMG Ed., BH, 1997

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